J. Bras. Nefrol. 2014;36(1 suppl.1):9-12.

1. Diagnóstico de anemia em pacientes portadores de doença renal crônica

Maria Almerinda Ribeiro-Alves, Pedro Alejandro Gordan

DOI: 10.5935/0101-2800.2014S003

Citação: Ribeiro-Alves MA, Gordan PA. 1. Diagnóstico de anemia em pacientes portadores de doença renal crônica. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.) 36(1 Suppl 1):9. doi:10.5935/0101-2800.2014S003
Recebido: Agosto 23 2013; Aceito: Janeiro 10 2014

RECOMENDAÇÃO 1.1

O diagnóstico de anemia em pacientes adultos (acima de 18 anos) com doença renal crônica (DRC), independentemente do estágio da doença, deverão obedecer aos critérios diagnósticos recomendados para a população geral (Evidência B).

  • Homens: nível de hemoglobina menor que 13,0 g/dL;
  • Mulheres e homens acima de 65 anos: nível de hemoglobina menor que 12,0 g/dL.

Este é um critério diagnóstico e não de intervenção (ver item tratamento).

RECOMENDAÇÃO 1.2

Hemograma, saturação de transferrina e ferritina sérica deverão ser solicitados para todos os pacientes com DRC, independentemente do estágio da doença (Opinião).

RECOMENDAÇÃO 1.3

Em todos os pacientes com DRC, outras causas de anemia deverão ser investigadas sempre que não houver compatibilidade dos índices hematimétricos com a taxa de filtração glomerular (mesmo para anemias normocrômicas e normocíticas) ou quando houver indicação clínica.

JUSTIFICATIVA

A anemia da DRC é normocítica (volume corpuscular médio, VCM, entre 80 e 96 fentolitros, fl) e normocrômica (concentração de hemoglobina corpuscular média, CHCM, entre 32 e 36 g/dL) e atribuída a um déficit relativo de eritropoietina, porém, pode ter como fatores agravantes a deficiência de ferro (causada por perdas gastrointestinais imperceptíveis, desnutrição, múltiplas intervenções cirúrgicas, exames laboratoriais frequentes e perdas na diálise), a presença de fenômeno inflamatório e outras causas não relacionadas à DRC que podem alterar as características hematimétricas da anemia (Tabela 1).

Para avaliação correta da anemia, é preciso levar em conta o estágio da DRC1 (Tabela 2). A anemia da DRC, em geral, manifesta-se quando a taxa de filtração glomerular (TFG) diminui para níveis menores que 70 mL/min/1,73m2 em homens e 50 ml/min/1,73m2 em mulheres, porém, sua intensidade e prevalência são variáveis e tornam-se mais acentuadas com a piora da função renal, principalmente nos homens.2

A anemia da DRC é habitualmente assintomática e de instalação lenta, permitindo a adaptação do paciente aos níveis decrescentes de hemoglobina. O diagnóstico preciso e a abordagem terapêutica precoce são cruciais para que os conhecidos efeitos deletérios da anemia sobre os sistemas cardiovascular e nervoso e, talvez, sobre a progressão da doença renal possam ser prevenidos.

Os pacientes diabéticos constituem um grupo que merece um cuidado maior, visto que desenvolvem anemia mais grave e frequente que os pacientes com outras causas de DRC, o que pode determinar um pior prognóstico quanto à morbidade, sobrevida e a incidência de complicações.3

A presença de anemia está associada à evolução desfavorável do paciente em diversas doenças. A definição de anemia não é ainda uma questão resolvida. A maioria dos profissionais utiliza a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS),4,5 embora novos valores de referência estejam sendo utilizados a partir dos estudos epidemiológicos do NHANES-III (US National Health and Nutrition Examination Survey).6

Recentemente, sugeriu-se, de acordo com grandes estudos epidemiológicos na população americana, que concentrações de hemoglobina abaixo de 13,7 g/dL para homens brancos entre 20 e 60 anos; 13,2 g/dL para homens brancos com mais de 60 anos e 12,2 g/dL para mulheres brancas com mais de 20 anos têm apenas 5% de chance de estar em valor de normalidade. Embora tais estudos ainda sejam controversos, neste texto a definição da OMS foi considerada como o padrão para estas recomendações.4

A dosagem da concentração sanguínea de hemoglobina é mais confiável que os níveis de hematócrito. O momento da coleta, nos pacientes que se encontram em programa hemodialítico, é de extrema importância, tendo em vista as variações observadas na concentração de hemoglobina dependentes do estado de volemia. Podem ser observadas variações de até 1,5 g/dL no período pós-hemodiálise; por isso, recomenda-se colher o sangue antes de iniciar a segunda sessão de diálise da semana.2,7

O Volume Corpuscular Médio (VCM) define o volume das hemácias sendo usado na classificação das anemias (normocítica, microcítica e macrocítica). Geralmente, é medido por instrumentos automatizados, mas pode ser calculado dividindo-se o hematócrito pelo número de glóbulos vermelhos6 (Tabela 3).

A Hemoglobina Corpuscular Média (HCM) é a medida do conteúdo de hemoglobina por glóbulo vermelho. Também medida por instrumentos automatizados, pode ser calculada pela divisão da taxa de hemoglobina pelo número de glóbulos vermelhos. A HCM é o reflexo da massa de hemoglobina.

A Concentração de Hemoglobina Corpuscular Média (CHCM) reflete a concentração de hemoglobina dentro de uma hemácia. Com os valores de HCM e CHCM, identifica-se a quantidade de hemoglobina dentro da hemácia (hipocromia, normocromia e hipercromia).

Como a anemia associada à DRC é normocrômica e normocítica, o achado de anemia com características morfológicas diferentes indica a necessidade de avaliar outras causas de anemia. A deficiência de ferro caracteriza-se pela presença de microcitose e hipocromia, assim, já na análise do hemograma, pode-se suspeitar de deficiência de ferro, a qual acomete cerca de 30% da população mundial, sendo a causa mais importante de anemia. Mesmo com níveis de hemoglobina ainda dentro dos limites da normalidade, a deficiência de ferro já pode ser identificada por estoques inadequados por meio da dosagem de ferritina sérica e do índice de saturação de transferrina (TSAT).7,8

Dessa forma, em pacientes, em qualquer estágio de DRC, que apresentem estoques inadequados de ferro, essa anormalidade já pode ser identificada, inclusive nos estágios 1 e 2, quando a saturação de transferrina for abaixo de 20% e a ferritina abaixo de 12 ng/mL.7

Em pacientes portadores de DRC em estágios mais avançados,310 índices de saturação de transferrina abaixo de 20% têm uma sensibilidade de cerca de 80% em identificar casos de anemia por deficiência absoluta de ferro. Já para a dosagem de ferritina < 100 ng/mL, a sensibilidade em diagnosticar deficiência de ferro situa-se entre 35% e 48%. Apesar da baixa sensibilidade, os dois índices são os principais parâmetros utilizados para avaliação dos depósitos de ferro nesta situação.7 Níveis de saturação acima de 30% e dosagens de ferritina acima de 500 ng/mL são considerados, na ausência de processos inflamatórios, como indicativos de sobrecarga de ferro.

A dosagem do receptor solúvel de transferrina7 tem sido usada para avaliar a atividade eritropoiética, pois, quando há um aumento desta atividade, aumenta a apresentação do receptor na membrana dos eritroblastos da medula óssea, que se reflete no aumento da dosagem sérica do receptor, tal como ocorre na anemia ferropriva ou durante o uso de AEE. Embora este teste tenha sido concebido para substituir a dosagem de ferritina, visto que não é afetado pelos processos inflamatórios, na prática, ele tem a mesma sensibilidade e especificidade que a transferrina, e sua utilidade reside no fato de que o aumento da dosagem sérica do receptor revela uma resposta inequívoca da ação dos AEE, mesmo antes do aumento dos reticulócitos e da hemoglobina. Seu emprego está limitado pela pouca disponibilidade e alto custo.

A dosagem do conteúdo de hemoglobina nos reticulócitos (CHr) tem um baixo índice de variação e poderá ser incorporada à prática clínica com a utilização de contadores de células mais sofisticados a um custo aceitável. Diante da diminuição funcional nos depósitos de ferro, o conteúdo de hemoglobina reticulocitária fica deficiente. Sabe-se que a contagem de reticulócitos indica a resposta hematopoiética ao tratamento com AEE.

Considerando-se o curto tempo de maturação dos reticulócitos, a dosagem do conteúdo de hemoglobina nestes elementos reflete com mais precisão a incorporação de ferro na sua formação. Da mesma forma, o cálculo da porcentagem de células vermelhas hipocrômicas tem mostrado boa especificidade e sensibilidade em avaliar a resposta à administração de ferro.7 Atualmente, a disponibilidade deste exame é restrita, não permitindo a sua utilização de rotina. Dosagem de níveis séricos de hepcidina não se mostraram clinicamente úteis ou superiores aos testes habituais de avaliação do estado de ferro.11

Macrocitose se associa à deficiência de ácido fólico e vitamina B12 e os níveis séricos de folato e vitamina B12 deverão ser solicitados no início do tratamento e quando necessários. Microcitose com disponibilidade de estoques de ferro adequados pode ser evidenciada em pacientes com diagnóstico de talassemia e intoxicação por alumínio.

REFERÊNCIAS

1. National Kidney Foundation. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification, and stratification. Am J Kidney Dis 2002;39:S1-S266.Link PubMed
2. Hsu CY, Bates DW, Kuperman GJ, Curhan GC. Relationship between hematocrit and renal function in men and women. Kidney Int 2001;59:725-31. PMID: 11168955 DOI: http://dx.doi.org/10.1046/j.1523-1755.2001.059002725.xLink PubMedLink DOI
3. Thomas MC, Maclsaac RJ, Tsalamandis C, Power D, Jerums G. Unrecognized anemia in patients with diabetes: a cross-sectional survey. Diabetes Care 2003;26:1164-9. DOI: http://dx.doi.org/10.2337/diacare.26.4.1164Link DOILink PubMed
4. Blanc B, Finch CA, Hallberg, L, Lawkowicz W, Layrisse M, Mollin DL.. Nutritional anemias. Report of a WHO Scientific Group. WHO Teach Rep Ser 1968;405:1-40
5. Beutler E, Waalen J. The definition of anemia: what is the lower limit of normal of the blood hemoglobin concentration? Blood 2006;1;107:1747-50. PMID: 16189263Link PubMedLink DOI
6. Astor BC, Muntner P, Levin A, Eustace JA, Coresh J.: Association of kidney function with anemia: The Third National Health and Nutrition Examination Survey (1988-1994). Arch Intern Med 2002;162:1401-8. DOI: http://dx.doi.org/10.1001/archinte.162.12.1401Link DOILink PubMed
7. Wish, JB. Assessing iron status: beyond serum ferritin and transferrin saturation. Clin J Am Soc Nephrol 2006;1:S4-S6S8.Link DOILink PubMed
8. Appendix A: Haematology Methodology. Nephrol Dial Transplant 2004;119:, Suppl 2; ii37-ii38.
9. JP Greer, J Foerster, JN Lukens, GM Rodgers, F Paraskevas, BE Glader, eds. Wintrobes’s Clinical Hematology. 11th edition. Baltimore: Lippincott Williams and Wilkins; 2004.
10. Fishbane S. Iron management in nondialysis-dependent CKD. Am J Kidney Dis 2007;49:736-43. PMID: 17533016 DOI: http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2007.03.007Link PubMedLink DOI
11. Tessitore N, Girelli D, Campostrini N, Bedogna V, Solero GP, Castagna A, e N et al. Hepcidin is not useful as a biomarker for iron needs in haemodialysis patients on maintenance erythropoiesis-stimulating agents. Nephrol Dial Transplant 2010;25:3996-4002.Link DOILink PubMed
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