J. Bras. Nefrol. 2009;31(1):62-9.

Contribuição Renal para a Termoregulação: Termogênese e a Doença Renal

Nelson Afonso Lutaif, José Antonio Rocha Gontijo

Renal Contribution to Thermoregulation: Thermogenesis and Renal Disease

 

Resumo:

O presente estudo apresenta inicialmente uma breve revisão da fisiologia da termogênese e suas relações com atividade renal. Embora se saiba que o rim tem uma intensa atividade metabólica, o impacto de sua contribuição à manutenção da homeostase térmica não foi ainda devidamente avaliado. Através de um modelo concebido para promover o isolamento térmico em animais ratos Sprague-Dawley; aferimos, após 30 minutos, um ganho térmico de 2.77 ± 0.47°C no grupo com nefrectomia 5/6; 2.56 ± 0.24°C no grupo denervado; 2.2 ± 0.42°C no grupo simulado e 2.17 ± 0.02°C em animais controles íntegros (P<0.05). Foi também coletada e aferida a massa do peso da gordura marrom com os seguintes resultados: Nx5/6: 174.5 ± 5.80(g); Dx: 233.1 ± 25.42(g) e sham: 279.6 ± 28.22(g) (P<0.005).
Sugerimos que os maiores ganhos térmicos observados nos modelos parcialmente nefrectomizados (denervados e nefrectomizados) foram ocasionados por uma suposta necessidade de compensar a perda da atividade termogênica renal. Esta atividade compensatória deveu-se, sobretudo, a um aumento na queima de gordura marrom e da atividade da termogênese facultativa neste tecido.

Descritores: Temperatura. Termogênese. Metabolismo. Sistema nervoso. Lesão renal.

Abstract:

The present study starts with a brief view of thermogenesis and its interconnections with renal activity. It is well known that the kidney has an intense metabolic activity but its true contribution to the internal temperature has not yet been well evaluated. Utilizing a system which promoted a thermal isolation in Sprague-Dawley rats, we were able to record the increase of temperature from basal internal temperatures during thirty minutes of experiment, which was associated with enhanced uncoupling protein (UCP) expression. The group of sub total nephrectomy (Nx5/6) registered a gain of 2.77 ± 0.47 °C, the denervation group (DNx): 2.56 ± 0.24°C, the sham: 2.2 ± 0.43°C, and the normal group a gain of 2.17± 0.02°C (P<0.05). We also measured the weight of brown adipose tissue (BAT) – a specialized thermogenic tissue – with the following results: Nx5/6: 174.5 ± 5.80 g; DNx: 233.1 ± 25.42 g and sham: 279.6 ± 28.22 g (P<0,005). We concluded that the higher values of thermal gain observed in these chronic injuries (denervation and nephrectomy) revealed the necessity of increase in facultative thermogenic activity to supply the loss of body heat through BATactivation.

Descriptors: Temperature. Thermogenesis. Metabolism. Central nervous system. Renal injury

 

INTRODUÇÃO

A atividade funcional do néfron demanda um intenso consumo energético decorrente da atividade metabólica, principalmente a do epitélio tubular e, como decorrência, determina um dos mais elevados consumos de ATP do organismo. Cerca de 10% de todo o oxigênio utilizado por órgãos e tecidos corporais, em repouso ou “resting energy expenditure rate (REE)” na notação inglesa, são destinados ao rim, o que corresponde a aproximadamente 10% da produção térmica corporal1,2.

Este elevado consumo de energia pelo rim deve-se a sua necessidade de manter um intenso transporte ativo de íons3, mais precisamente da reabsorção tubular do sódio.

Considera-se, inclusive, que o trabalho renal pode ser estimado pela razão entre o seu consumo de oxigênio e a fração excretada de sódio (FENa/02).

Estudos em portadores de doenças renais crônicas têm sido realizados para avaliar o impacto da perda da função renal na necessidade energética basal ou REE4-6.

Paradoxalmente, observou-se que a redução desta necessidade se deve, não propriamente a uma redução da atividade metabólica renal, mas a uma combinação de fatores que incluem anorexia e um estado inflamatório sistêmico.

O elo entre esses fatores pode estar no aumento dos níveis séricos de hormônios e peptídeos, entre estes, a leptina, em decorrência da diminuição do clearance desse peptídeo ou elevação da sua secreção7-10.

A leptina produzida pelas células do tecido adiposo tem vários efeitos sistêmicos, entre os quais, ativar o centro de saciedade através da estimulação do receptor α- MSH (α-melanocyte-stimulating hormone), estimular a termogênese facultativa através do aumento da atividade simpática na gordura marrom e induzir a atividade inflamatória por meio do aumento da expressão das citoquinas inflamatórias da família das interleucinas11,12.

No que tange ao nível molecular, Lutaif et al.(2008) mostraram que os efeitos da lesão renal crônica não afetam de maneira global todas as etapas do metabolismo intermediário e tampouco o consumo de oxigênio e a reserva de ADP na mitocôndria. Em situações agudas, estudos clínicos revelaram que a demanda energética é alterada apenas quando há uma concomitância com infecção sistêmica (situação hipercatabólica) instalada, permanecendo inalterada quando a insuficiência renal aguda se apresenta isoladamente13-15.

Porém, outro efeito da atividade metabólica é geração de calor ou termogênese. De acordo com a primeira lei da termodinâmica, todo gasto energético para manter o transporte iônico e a vitalidade das células deveria reverter uma considerável parcela ao meio sob a forma de calor. Assim, supõe-se que o trabalho renal seja uma importante fonte de calor para manter a homeostase térmica corporal. Para descrever as relações entre o rim e a atividade termogênica, apresentamos, a seguir, uma breve visão sobre a fisiologia do controle térmico.

Fisiologia da Termogênese O termo termogênese, quando empregado em biologia, se refere a todos os processos fisiopatológicos que possam alterar a temperatura dos organismos. Atermogênese também é uma característica inata das células dos seres endotérmicos que mantêm regulada espontaneamente sua temperatura, em uma faixa predeterminada15.

A literatura científica, em meados da década de noventa, consagrou subdivisões do termo para diferenciar as diversas fontes de calor. Assim, foram criados os termos termogênese obrigatória (ou metabólica) e termogênese facultativa (ou induzida)16,17.

A termogênese obrigatória designa como fonte de calor as reações ligadas ao metabolismo basal e consumo de oxigênio, mais especificamente as reações que envolvem a síntese e a hidrólise do ATP. Em termos contributivos, 90% do total de calor gerado por esta atividade vêm da manutenção do gradiente eletroquímico entre a membrana interna e matriz mitocondrial16-19.

A cadeia respiratória é a responsável pela formação do gradiente através da redução das coenzimas FADH e NADH pela ação da FAD e NAD desidrogenases, que separam o elétron do próton no átomo de hidrogênio, sendo o elétron transferido para o oxigênio e o próton para a matriz ao final da passagem pelos citocromos I e II localizados na membrana interna. Esta positividade será usada pela molécula ATP-sintetase, que utilizará o retorno destes prótons como força eletromotriz para conjugar um átomo de fósforo à molécula de ADP18-22.

A termogênese facultativa, ao contrário da obrigatória que pouco varia, é estimulada pelo frio e dieta.

Quando estimulada pelo frio, dois mecanismos são ativados pelos receptores sensíveis à temperatura localizada nos nervos aferentes sensoriais. Inicialmente, há um tremor muscular, resultante da contração das miofibrilas em decorrência do influxo de cálcio sarcoplasmático, porém sem realização de trabalho. Este mecanismo é denominado como termogênese facultativa do tipo shivering23.

Por outro lado, a termogênese facultativa está relacionada à adaptação a situações de exposição prolongada ao frio, com a ativação de moléculas da família das proteínas desacopladoras (UCP), sendo denominada termogênese facultativa do tipo non-shivering17.

Estas moléculas identificadas em 1976, no tecido adiposo marrom dos mamíferos, foram denominadas de UCP1. Posteriormente, outros homólogos foram purificados em outros tecidos como a UCP2 no fígado e UCP3 nos músculos. O mecanismo de ação destas proteínas baseia- se no aumento da ineficiência na produção de ATP.

A força eletromotriz do gradiente eletroquímico é dissipada, sem que haja síntese de ATP, e acoplada ao vazamento de prótons para a matriz mitocondrial e há um maior consumo de oxigênio, estimulando a cadeia respiratória a reconstituir este gradiente através de reações em grande parte exotérmicas. Este mecanismo é, também, a via final da termogênese facultativa induzida pela dieta, que, diferentemente da termogênese facultativa induzida pelo frio controlada pelo núcleo supraóptico do hipotálamo, é controlada pelos núcleos laterais do hipotálamo e sensíveis a ação da leptina. Neste caso, a intenção é reduzir a energia acumulada sob a forma de ácidos graxos nas moléculas do tecido adiposo, através de sua “queima” pelo vazamento de prótons ocasionado pela ativação das UCPs16-19, 24.

Em resumo, a atividade termogênica é um fenômeno essencialmente molecular, que pode ser ativado via núcleos do hipotálamo através tanto de estímulos aferentes humorais como neurossensoriais.

Relação entre atividade renal e termogênese Poucos estudos relacionam diretamente a perda da função renal com a atividade termogênica. Os primeiros relatos datam da década de 30 do século passado, nos quais foi demonstrado que o custo para se concentrar a urina a uma osmolaridade superior ao plasma é muito inferior ao consumo energético renal, evidenciando uma ineficiência no gasto energético de cerca de 90% e classificando o rim mais como uma “resistência” do que propriamente um filtro25.

Brundim, entretanto, demonstrou que um aumento na atividade termogênica renal não transfere diretamente calor para a corrente sanguínea, após medir simultaneamente a temperatura da artéria e veia renal, durante um aumento no consumo de oxigênio renal1. Este trabalho vem em suporte à hipótese de que o rim execute o que Aukland denominou de clearance de calor, decorrente da existência de uma diferença de temperatura entre o córtex e a medula e da propriedade dos líquidos de serem bons transmissores térmicos26.

Finalmente, Bigazzi, na década de 90, relacionou a perda crônica da função renal com uma ativação da gordura marrom e ao aumento da atividade adrenérgica ao nível do sistema nervoso central, sugerindo uma nova explicação para a caquexia urêmica e associando de maneira indireta a perda da função renal com a homeostase térmica27, 28.

Nos rins, um tecido altamente aeróbico e gerador de calor (contribui com em torno de 10% da geração total de energia), mais de 60% do consumo de oxigênio estão diretamente ligados ao transporte tubular mediado pela Na/K ATPase. A capacidade respiratória mitocondrial restante é presumivelmente dividida entre aquela gerada pela produção de ATP e o processo de respiração celular não fosforilativo ([Harris et al., 1991])21.

Já se demonstrou que neurônios sensórios renais são estimulados por mecano- e quimioreceptores [Gontijo e Kopp, 1994; Gontijo et al., 1999]29, 30. Uma vez que a completa significância fisiológica dos receptores sensoriais renais permanece incompletamente conhecida, aventamos a hipótese de que neurônios aferentes renais podem também modular muitas outras respostas a diferentes estímulos, entre as quais, se incluem modificações da temperatura corporal.

O Estudo da Termogênese Renal – O modelo de Isolamento térmico Para investigar a atividade termogênica global (obrigatória e facultativa), foi construído um modelo experimental baseado na aplicação da primeira lei da termodinâmica, onde a ΔU (energia interna) = [Calor – Trabalho] e, após submergir o animal em água aquecida e em repouso, observa-se que o Trabalho (T) é = 0 e Calor transferido para o ambiente (C) = 0.

Assim a expressão final pode ser apresentada como: ΔU=0 ou Energia (Final) – Energia (Inicial) = 0 Energia (Final) = Energia (lnicial). Tendo em vista que a energia potencial química (gerada durante o anabolismo) corresponde à energia inicial e à transformação desta energia química em térmica como cálculo da energia final, pode-se deduzir que: Taxa do Metabolismo Basal (TMB) = Variação da Energia Térmica, ou seja, a TMB (obtida por métodos calorimétricos = dT/dt x massa x capacidade calórica. De tal forma que dT/dt seja a expressão matemática da variação instantânea da temperatura ao longo do tempo e expressa em Celsius por hora (°C/h). Foram então construídas simulações teóricas e experimentos laboratoriais para testar a validade do método e comprovar a relação da atividade renal e termogênese: Simulações teóricas Modelo normal Utilizando dados experimentais anteriores para a capacidade calorífica31 e a taxa metabólica32, além da massa em kg do rato, teremos: dT/dt = 0,96(Cal/hora) / 0,83(Cal/kg/ºC) x 0,25(kg) dT/dt = 5,28 ºC/hora Ou um aumento de 2,64ºC a cada 30 minutos durante o isolamento térmico Modelo anéfrico Supondo que um animal sem os rins deverá ter comprometidos dez por cento de sua produção de calor (taxa de consumo de oxigênio), sua atividade termogênica deverá ser acelerada na mesma proporção; consequentemente, ao final de 30 minutos de isolamento térmico, sua temperatura final deverá ter um acréscimo de 0,26 graus Celsius.

Outros modelos experimentais – Nefrectomia 5/6 (Nx5/6) Descrição metodológica Estudos experimentais foram realizados com ratos Sprague-Dawley de seis semanas de idade (180 e 220g de peso corporal) provenientes do Centro de Bioterismo da Unicamp (CEMIB) e acondicionados em condições padrões de temperatura, umidade e iluminação. Os animais foram mantidos ingerindo ração Labina para animais de laboratório e sem qualquer restrição ao acesso à água. Previamente aos experimentos e ao isolamento térmico, foi observado um jejum para alimentos sólidos de 6 horas, permitindo, no entanto, livre acesso dos animais à água.

Para simular o modelo teórico de animais com comprometimento funcional renal, foram realizados dois tipos de cirurgias: 1 – Ablação renal parcial ou Nx5/6 (n=6): após a inoculação do anestésico intraperitonial – cloridrato de S(+) Ketamina (75 mg/kg, Cristália, Itapira, SP) + Xilasina na dose 10mg/kg (Bayer,São Paulo, SP) + Sulfato de Atropina na dose de 0,1mL/100mg (Hipolabor, Sabará, MG) – e o estabelecimento de um plano anestésico adequado (ausência de reflexo córneo-palpebral), procedeuse, então, a uma incisão lateral à esquerda, expondo o rim para retirada cuidadosa da cápsula renal e preservação da suprarrenal. Procedeu-se à ablação renal com um auxílio de um bisturi elétrico, fazendo a excisão dos pólos renais e, em seguida, os órgãos foram inseridos novamente dentro da cavidade retroperitoneal. À direita, 24 horas após a ressecção dos pólos renais e a descapsulação, o rim foi excisado totalmente. Os animais foram, em seguida, colocados em gaiolas individuais por sete dias, da primeira intervenção até a realização do experimento.

2 – Denervação renal bilateral ou DNx (n=6): Após a aplicação da rotina anestésica já descrita, os animais foram submetidos a uma incisão dorsal ampla (T10 a S1).

Com ajuda de um Estereomicroscópio Nikkon, utilizando- se uma ocular de 2,5x e objetiva com ampliação de 20x, promoveu-se a retirada das fibras nervosas visíveis localizadas ao longo das artérias renais, por meio de um processo mecânico por dissecção inicialmente e, em seguida, a denervação química, utilizando algodão embebido com fenol alcoólico a 10% aplicado em toda a extensão da artéria renal. A incisão cirúrgica foi suturada por planos, e os animais foram colocados em gaiolas individuais por sete dias até a realização dos experimentos.

Para determinar o padrão normal, utilizamos dois grupos controles, sendo um denominado controle íntegro (NL), sem qualquer intervenção, e um grupo simulado (sham), que sofreu intervenção cirúrgica semelhante ao grupo denervado, porém com preservação da inervação e anatomia renal.

Curvas térmicas Para a realização das curvas térmicas, utilizou-se um banho térmico, especialmente construído para esta finalidade (BioÉtica, São Paulo, SP), com ajuste de temperatura digital e capacidade de 3,2 litros. O banho foi equipado com dois contentores feitos sob medida para os experimentos, modelados em aço inoxidável e ajustados para acomodar um rato cada vez, imerso em água até a região cervical e cujo desenho propiciou a determinação das temperaturas através de sensor térmico (Harvard, MA, EUA). As mensurações foram efetuadas por um termômetro digital (IOPE, São Paulo, SP) com medidas para graus Celsius (°C) e precisão de centésimos de centígrados e calibrado de acordo com os padrões do Instituto Brasileiro de Normas Técnicas.

Após a sedação i.p. com Ketamina + Romprum (0,2mL/100g) e sulfato de atropina (0,1mL/100g), introduziu- se via retal o probe com sensor térmico para monitorização da temperatura retal. Em seguida a um período de estabilização, de aproximadamente 5 minutos póssedação, os ratos foram imersos como previamente descrito em banho isotérmico aquecido com temperatura ajustada próxima a da temperatura corporal, a 37,3ºC. Os animais permaneceram imersos por 30 minutos, apenas com a cabeça para fora da água, tendo sido continuamente aferida a temperatura a cada 60 segundos.

Atividade da termogênese facultativa Após a realização das curvas térmicas, os ratos dos grupos sham, denervados e parcialmente nefrectomizados foram submetidos à extração da gordura marrom interescapular, para a aferição da massa deste tecido e determinação por Western blot da expressão de UCP. Através de uma incisão dorsal na altura dos membros superiores pró xima à região cervical, o tecido foi retirado e acondicionado em uma placa de Petri e sob visualização de um Estereomicroscópio Nikkon, e, utilizando-se uma ocular de 2,5x e objetiva com ampliação de 20x, procedeu-se à eliminação da fáscia e tecidos musculares adjacentes. Após a limpeza, os tecidos foram pesados em uma balança digital.

RESULTADOS

À luz de uma interpretação fisiológica, as temperaturas do grupo denervado representam um modelo funcionalmente anéfrico do ponto de vista do sistema nervoso.

A inervação renal possui tanto fibras aferentes (sensoriais) como eferentes (simpáticas), sendo as primeiras com populações especializadas na condução de estímulos reflexos relacionados à temperatura33, Uma vez interrompida esta alça neural, libera-se o efeito inibitório sobre os centros reguladores térmicos. O grupo nefrectomizado bilateralmente, já anteriormente estudado por Bigazzi, é o único sabidamente com a termogênese elevada através de uma maior expressão das proteínas desacopladoras tipo 128; mostrou uma atividade termogênica tão intensa quanto o grupo denervado, através da análise dos resultados das temperaturas apresentados na Tabela 1.

 

Com os resultados obtidos após Nx5/6, ficou demonstrado que o comportamento termodinâmico destes animais foi similar àquele previsto por simulação teórica descrita acima. Nos grupos controles (simulado e normal), as modificações térmicas ficaram cerca 0,4ºC abaixo do esperado, com a elevação média de aproximadamente 2,2ºC ao final de 30 minutos de experimentação.

Nos grupos parcialmente nefrectomizados e denervados bilateralmente, houve uma projeção teórica de acréscimo térmico da ordem de 2,69ºC contra 2,77ºC observados no grupo nefrectomizado e 2,56ºC nos animais denervados (ANOVA, P<0,05). A análise estatística dos resultados também demonstrou que as temperaturas iniciais do grupo denervado foram significativamente superiores àquelas do grupo nefrectomizado [ANOVA, P<0,05; Bonferroni: P<0,05].

As temperaturas finais do grupo denervado também foram mais elevadas quando comparadas aos grupos nefrectomizados e sham [ANOVA: P<0,05; Bonferroni: P<0,05]. O ganho térmico também foi significativamente diferente entre os grupos estudados (ANOVA: p<0,05).

Quanto à massa adiposa extraída da gordura marrom, a Tabela 1 demonstra uma alteração nos pesos, sendo que as menores médias foram provenientes dos grupos tratados, em especial no grupo nefrectomizado, refletindo a intensa lipólise que se segue à nefrectomia parcial ou à denervação renal e, consequentemente, à estimulação dos seus receptores β-adrenérgicos periféricos.

Os registros gráficos das curvas térmicas evidenciam comparativamente, o aumento progressivo da temperatura após a imersão em água isotérmica. Observa-se o descolamento da curva térmica do grupo Dx quando comparado ao grupo SHAM (Figura 1) e do NX5/6 quando comparado ao grupo SHAM (Figura 2), durante os 30 minutos do experimento.

Figura 1. Curva térmica produzida durante o isolamento térmico, evidenciando o ganho térmico ao final de 30 minutos. Na figura acima, estão registrados os grupos denervados e SHAM para efeito de comparação.

Figura 2. Curva térmica com os grupos nefrectomizados e
SHAM para efeito comparativo dos ganhos térmicos.

A expressiva síntese de UCP (Figura 3), vista na gordura marrom dos animais parcialmente nefrectomizados sugere que, pelo menos em parte, a hipotermia observada inicialmente seja decorrente de uma menor produção calórica observada nestes animais e possivelmente compensada pela ativação da termogênese facultativa.

Figura 3. Bandas produzidas pela técnica de Imunoblot (IB), evidenciando um aumento tanto na expressão quanto na atividade α-py) das proteínas desacopladoras tipo1 (UCP1) nos grupos tratados versus grupos controles. A diferença na densidade óptica entre as bandas serviu para o cálculo da análise estatística.

DISCUSSÃO

A análise em conjunto dos resultados deste trabalho experimental permite sugerir que a não-integridade do sistema renal, seja ela funcional ou sensorial neural, leva secundariamente a uma ativação termogênica compensatória proporcional à elevação da atividade metabólica, inclusive com o consumo da reserva adiposa destes animais.

O modelo utilizado de isolamento térmico permitiu identificar e quantificar (por western blot) a elevação de um fator vinculado à taxa de atividade termogênica facultativa, uma vez que, previamente, Lutaif et al.

(2008) não conseguiram evidenciar modificações significativas no consumo de O2 e, consequentemente, da atividade da cadeia respiratória nestes animais.

Ficou também demonstrado que o principal mecanismo de ativação compensatória é realizado através das vias eferentes neurais que ativam a gordura marrom e, consequentemente, a expressão de proteínas desacopladoras da cadeia respiratória mitocondrial. Estes resultados confirmam resultados obtidos em nosso laboratório, quando demonstramos o aumento da atividade da UCP-1 ao nível molecular e também o bloqueio desta via compensatória com o uso de betabloqueadores13.

Embora a via nervosa aferente renal fosse identificada como responsável pelas alterações, não há ainda subsídios experimentais bem fundamentados que permitam demonstrar que esta via esteja diretamente envolvida neste controle.

A via humoral, principalmente a relacionada à leptina, já comentada anteriormente, pode estar também envolvida através da ativação de núcleos peri-hipotalâmicos e contribuir para a expressão dos mesmos fenômenos observados. Assim a caquexia vista nos renais crônicos e associada à anorexia causada pela leptina pode, na verdade, estar também relacionada à produção de calor através do catabolismo das reservas energéticas.

Embora haja um bom número de evidências, o mecanismo preciso através do qual se estabelece a influência dos rins no controle termogênico corporal deverá ser motivo ainda de estudo. Os resultados deste e de prévios estudos têm apresentado que o controle do set-point para temperatura corporal em animais monitorados após o bloqueio isotérmico, pela imersão em água, é significativamente afetado pela denervação renal bilateral (Lutaif et AL., 2008)13.

Tem-se demonstrado (Gontijo e Kopp, 1994; Gontijo et al., 1999)29,30 que atividade neural sensorial renal é desencadeada pela estimulação de quimio- e mecanoreceptores.

Uma vez que a significância fisiológica e os diferentes tipos de receptores sensoriais renais ainda não são completamente conhecidos, nós aventamos a possibilidade de que este sistema neurossensorial pode conduzir muitos outros sinais entre os quais se inclui a sensibilidade térmica.

Os fatores fisiopatológicos por trás desta termolabilidade observada em doenças renais com perda de função são pouco conhecidos. Vários autores têm definido a presença de fatores excretados pela urina que poderiam alterar o controle térmico corporal (Kluger et al., 1981)34. Knochel e Seldin (1981) levantaram a hipótese de que a retenção de cianato em pacientes portadores de falência renal crônica poderia ser a causa da redução da temperatura corporal nestes pacientes e em modelo experimentais35. Entretanto, estudos posteriores têm demonstrado que as concentrações plasmáticas de cianato na urina não estão elevadas o suficiente para modificar a temperatura corporal em coelhos (Eiger and Kluger, 1985)36.

Tem-se especulado que a retenção renal durante a perda funcional poderia interferir na atividade moduladora de áreas hipotálamo-hipofisários. No entanto, Silverblatt et al. (1969) e Kluger et al. (1981) demonstraram que animais anéfricos respondiam à administração de pirogênio, com elevação da temperatura corporal34,37. Estes dados podem sugerir que áreas do sistema nervoso central envolvidas no controle da temperatura e desenvolvimento de febre não estão alteradas durante o desenvolvimento da IRC.

PERSPECTIVAS

Embora os mecanismos precisos responsáveis pela termolabilidade observada em um modelo de insuficiência renal crônica induzida pela nefrectomia parcial (Nx5/6) ainda não estejam totalmente esclarecidos, os achados do presente estudo, somados a dados previamente estabelecidos, permitem aventar a hipótese de que os rins e, em particular a atividade neurosensorial do rim, poderiam ter uma função central na homeostase térmica corporal.

Assim, a redução térmica que acompanha o comprometimento funcional renal poderia ser parcialmente compensada pela hiperexcitabilidade do sistema nervoso simpático sobre a gordura marrom. Especulativamente, nos parece interessante sugerir que a simultânea disfunção de sinais sensoriais renais poderia resultar em uma inabilidade homeostática do controle da temperatura corporal.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao CNPq (No.500868/91-3), CAPES e FAPESP (06/52431-1).

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Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil

Endereço para correspondência:
N.A. Lutaif
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas,
13083-592 Campinas, SP, Brasil
E-mail: nelson-afonso@uol.com.br

Contribuição Renal para a Termoregulação: Termogênese e a Doença Renal

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